Por Jaime Prado Gouvêa
A história do Suplemento Literário do Minas Gerais começou pelas estradas pobres do Norte de Minas Gerais, no início do governo de Israel Pinheiro, em meados dos anos 60 do século passado: o Governador notou que cerca de 200 localidades daquela região estavam virtualmente isoladas, sem receber jornais ou informações de espécie alguma do resto do País. Apenas o “Minas Gerais”, órgão oficial, e, portanto, obrigatório em repartições públicas, chegava até lá, mas levando apenas leis, decretos e atos administrativos. Preocupado com essa lacuna, o Governador recomendou ao então diretor da Imprensa Oficial, Raul Bernardo Nelson de Senna, que preparasse uma seção noticiosa e uma página de Literatura, revivendo uma antiga tradição do “Minas Gerais” que, por algum motivo, fora interrompida. Raul Bernardo tinha, nessa época, alguns intelectuais servindo na redação do jornal: Murilo Rubião, Aires da Mata Machado Filho e Bueno de Rivera. Chamou-os e recomendou a página de Literatura. Murilo Rubião sugeriu, então, que se fizesse um suplemento literário em vez de uma simples página. Sugestão aceita, Murilo, encarregado de ser o secretário da publicação (compondo com os dois colegas a comissão de redação) pediu um mês para preparar seu lançamento. No dia 3 de setembro de 1966, com Paulo Campos Guimarães na direção da Imprensa Oficial, surgia o primeiro número do Suplemento Literário do “Minas Gerais”.
Nessa época, apenas dois suplementos literários sobreviviam no Brasil: o do Correio do Povo, de Porto Alegre, e o de O Estado de São Paulo. Pouco antes, um suplemento que era publicado pelo Estado de Minas fora extinto, deixando com seu editor, o poeta Affonso Ávila, muitas matérias e colaborações inéditas. Murilo Rubião pediu a ajuda do amigo, de sua mulher Laís Corrêa de Araújo – convidada para integrar a comissão de redação – e de seus muitos amigos artistas. A receita deu certo e, desde a primeira página, em que vinha estampado um poema de Bueno de Rivera ilustrado por Álvaro Apocalypse, pôde contar com nomes como Fábio Lucas, João Camilo de Oliveira Torres, Zilah Correa de Araújo, Ildeu Brandão, Márcio Sampaio, Libério Neves, Flávio Márcio e Luis Gonzaga Vieira, além de desenhos de Chanina. Para compor a equipe de redação, foram convocados alguns jovens que apenas começavam a escrever: Rui Mourão, Humberto Werneck, Carlos Roberto Pellegrino, José Márcio Penido, Adão Ventura e João Paulo Gonçalves da Costa. As artes plásticas ficaram por conta de Márcio Sampaio e, para dar uma feição moderna ao jornal, foi dada toda liberdade ao diagramador Lucas Raposo. As ilustrações ficavam por conta de Álvaro Apocalypse, Chanina, Jarbas Juarez e Eduardo de Paula, todos já bastante conhecidos, e de novos que vinham surgindo, como Madu, Pompéia Britto da Rocha, Liliane Dardot, José Alberto Nemer, Carlos Wolney e José Márcio Brandão.
O Suplemento, nessa época, tinha oito páginas, que podiam passar a dezesseis em certas edições especiais, como a que comemorou o primeiro aniversário do jornal e que reunia nomes de expressão nacional como Carlos Drummond de Andrade, Libério Neves, Samuel Rawet, Haroldo de Campos, Benedito Nunes, Frederico Morais, Francisco Iglésias, Emílio Moura, Nélida Piñon, Maria Alice Barroso, Dalton Trevisan, Henriqueta Lisboa, Rui Mourão, Lucy Teixeira e muitos outros. Posteriormente, se fixaria nas doze páginas que o caracterizaram até a década de 80. Nos seus primeiros 20 anos, a periodicidade oscilou entre semanal e quinzenal.
O SLMG marcou grandes nomes de literatura. Entre as opiniões sobre o Suplemento, destaca-se esta: “…O contentamento e o interesse que tenho, de receber o Suplemento, são para mim de verdade. Acho-o sem falhas. Digo que está redondamente – esplendidamente – expressando a literatura de Minas, a cultura. Pode alguém, sem susto e protesto imaginar que acaso ele viesse, por infortúnio, a desaparecer? Nem mesmo compreendo que não tivesse havido antes esse mensageiro da altura. Parabéns, pois, aos brados. Deus o mantenha sempre! – para alegrar-nos e orgulhar-nos e nos enriquecer.” (Guimarães Rosa)
E também: “O SL do MINAS GERAIS põe o jornal a serviço da Literatura e das artes, mediador entre a criação e o consumidor, e o faz com dignidade e imaginação. Merece ser lido.” (Carlos Drummond de Andrade). Ou: “Tenho recebido os números do Suplemento Literário do MINAS GERAIS que me trazem o ar da nossa terra e de nossa gente, mostrando que Minas procura aggionarsi, como se diz aqui. Sei o quanto isso representa de esforço para vocês todos; aqui vai o meu sincero aplauso.” (Murilo Mendes)
À par dessa repercussão, o SLMG promove o lançamento de muita gente nova. É lançado um suplemento especial, em duas edições, dedicado inteiramente aos “novos” de Minas, uma geração que se interessava pela cultura como há muitos anos não se via no Estado. E estrangeiros também. Três poemas de William Carlos Williams são traduzidos por João Cabral de Melo Neto, Haroldo de Campos e Joaquim Cardozo. São lançados, pela primeira vez no Brasil, alguns dos maiores escritores contemporâneos: Julio Cortazar (Todos os Fogos o Fogo, junho de 1968, traduzido por Laís Correa De Araújo); Javier Villafañe (A Barata, janeiro de 1969, também traduzido por Laís); Jorge Luis Borges (A Loteria em Babilônia, setembro de 1969) e Gabriel Garcia Márquez (A Prodigiosa Tarde de Baltazar, janeiro de 1970, ambos em tradução de Humberto Werneck e Carlos Roberto Pellegrino).
Essa fase, no entanto, teria um dia de se chocar com o que vinha acontecendo com o Brasil no início dos anos 70. Maio de 1968, em Paris, já ia longe. Em janeiro daquele ano, cumprida sua parte e deixando o Suplemento já maduro o suficiente para seguir sem ele, Murilo Rubião convocou o escritor Rui Mourão, que já vinha fazendo excelente trabalho no jornal, para substituí-lo. Laís Correa de Araújo e Libério Neves formariam a comissão. No entanto, sombrias alegações políticas viriam impedir a posse de Rui Mourão. Libério Neves secretariou, interinamente, até maio, quando Ildeu Brandão foi nomeado para dirigir o jornal, já contando com Garcia de Paiva para auxiliá-lo. O Suplemento continuava.
Uma longa série de depoimentos, O escritor mineiro quando jovem – mais tarde estendida a outros estados – foi iniciada com Luiz Gonzaga Vieira, sob o título, não por acaso, de Por uma Literatura Mal-comportada. Em junho de 1972, Sérgio Sant’Anna traduzia A Banda Policial, de Donald Barthelme, lançando o escritor norte-americano no Brasil. Em maio de 1971, Ângelo Oswaldo era empossado como secretário. Música, cinema e artes plásticas ganham espaço no jornal. Matérias polêmicas são publicadas, assim como suas réplicas, num movimento vivo. Diversos números especiais são publicados. Surgem novos artistas como Marcos Coelho, Benjamin, Rosa Maria, Roberto Moreno, Luiz Maia, Humberto Guimarães. Por ocasião de um de seus aniversários, o Suplemento deixa de receber um voto de louvor da Academia Mineira de Letras sob a insólita alegação, feita por um de seus imortais, de que ele “não dava vez aos velhos”. O Brasil vivia seus tempos de “milagre”.
O ciclo de Ângelo Oswaldo terminaria em setembro de 1973, quando foi convidado para uma temporada de estudos em Paris. Mário Garcia de Paiva o substitui e chama Maria Luiza Ramos para compor a comissão. Mas as pressões continuam e um suplemento especial, que pretendia ser uma amostra do Conto Brasileiro Atual (24 textos de ficção), é mutilado pela censura. Seriam dois números, cada um com dezesseis páginas. O primeiro saiu perfeito, mas o segundo teve apenas oito páginas. A imprensa nacional começou a dar atenção a esses fatos, num apoio à resistência.
O clima político em que a nação vivia, a pressão cada vez maior gerada pelo choque entre o que tentava ser um movimento cultural e o fato de ser o veículo um órgão oficial — fato muito usado pelos eternos contestadores da linha do Suplemento —, acabaram por forçar uma queda da qualidade, um certo desânimo, um marasmo que só viria a ser sacudido com a nomeação do jornalista e escritor Wander Piroli para a secretaria do jornal, em janeiro de 1975.
Piroli trouxe o dinamismo do jornal diário a que estava acostumado, inovou na parte gráfica, publicou cordel, abriu espaço aos escritores que quisessem desabafar, agilizou o setor editorial e irritou os conservadores em geral. Durante alguns meses, a independência do Suplemento entusiasmou seus colaboradores; escritores de renome quiseram participar da festa; a qualidade cresceu. E, com ela, o perigo. Em maio de 1975, sem que seu secretário fosse sequer avisado, o “Minas Gerais” publicou um editorial informando que haveria uma reformulação no Suplemento. Piroli demitiu-se imediatamente e, com ele, a grande maioria dos colaboradores, fato que repercutiu, em tom de lamento e revolta, na grande imprensa nacional. O ciclo parecia fechado. A partir do número 454, de 17 de maio, a circulação do jornal foi interrompida – fato até então inédito-, só voltando em meados de junho, depois da nomeação de um novo secretário, Wilson Castelo Branco, que o dirigiria durante quase oito anos.
A vitória de Tancredo Neves nas eleições de 1982 prenunciava mudanças profundas, em particular no mundo artístico. Para o Suplemento, isso foi fundamental. Murilo Rubião, seu criador, foi nomeado Diretor da Imprensa Oficial. Entre suas metas estava a renovação do Suplemento, que voltasse a ter a importância que tivera em outros tempos, quando chegou a ser reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes veículos de informação cultural da Língua Portuguesa. Queria que fosse varrido todo o anacronismo e provincianismo por onde o jornal havia se enveredado, uma mudança que fosse até física.
Montou, então, uma equipe que conhecia bem, e que era encabeçada pela autoridade intelectual do professor Aires da Mata Machado Filho, seu Chefe de Gabinete. Como secretário, designou Duílio Gomes. A comissão de redação passou a ser composta por Wander Piroli e Paulinho Assunção. A equipe de redação contava com Manoel Lobato, Jaime Prado Gouvêa e Adão Ventura. E, para dar uma nova feição gráfica ao jornal, foi chamado o poeta Sebastião Nunes, autor da programação visual que seria executada, na prática, pelo diagramador Lucas Raposo. Até o logotipo foi mudado, e, em junho de 1983, começava a nova fase.
A reação, no entanto, não estava morta. Determinados leitores, acostumados com o antigo aspecto quase acadêmico do jornal, assustaram-se com as páginas mais limpas, com os espaços em branco valorizando poemas e ilustrações, com alguns textos considerados “fortes”, com tudo aquilo que, enfim, costuma incomodar os acostumados. Mas isso já não importava tanto. Os tempos eram outros. Números especiais voltaram a ser programados, inclusive certas edições impensáveis em outras épocas, como a inteiramente dedicada às mulheres – onde os textos eróticos predominavam – e a dos ilustradores, em que os textos se baseavam nos desenhos, invertendo-se o processo tradicional.
A partir daí, o Suplemento entrou na maturidade, seguindo sua vida como um avião em altitude de cruzeiro, até que, coincidentemente com a doença e a morte de Murilo Rubião, começou a sentir o efeito do tempo, foi envelhecendo, fechando-se sobre si próprio como uma publicação de paróquia, até quase não sair mais à rua, como qualquer idoso que não tem mais o que dizer. Até que, no final de 1994, a então Secretária de Estado da Cultura, Celina Albano, conseguiu passar o jornal para sua pasta. O Suplemento deixava de ser do “Minas Gerais” para ser de Minas Gerais.
Assim se passaram mais de cinquenta anos de bons e maus momentos, mas que serviram para a iniciação de muitos talentos hoje consagrados e que, talvez, sem o espaço para publicar e o convívio com alguns dos maiores escritores mineiros – Emílio Moura, Bueno de Rivera e tantos outros eram frequentadores quase diários da redação – talvez tivessem suas carreiras abortadas na origem.